By Mércia Dantas
Lurdinha circulou em minhas lembranças de adolescente há
pouco tempo. Estudamos na Quarta Série Ginasial do Padre Miguelinho e era
alguém bem diferente. Menina pobre, mais do que eu, sapatos rotos, meias e
blusa encardidas, um olho meio “troncho” sempre apontando para outro lado,
mansa, o andar de uma senhora de idade, lembrava minha avó. E era preta,
ritinta, cabelos pichauim, calada, sempre sozinha. E era diferente não pela
cor, não pelos cabelos, não pela simplicidade, mas por seus ideais: queria ser
professora, não matava as aulas. As demais amigas, muitas da Cidade Alta,
algumas ricas, viviam o mundo de frivolidades da juventude, as novidades da moda,
os namorados, a descoberta da sensualidade, os decotes e roupas coladas como a
querer mostrar os peitos empinados pelos soutiens emborrachados. Lurdinha não
tinha soutien, usava combinação, com certeza feita em casa, como era comum na
época. Nas rodas das fofocas elas estavam sempre lá, Lurdinha não. Nunca era
chamada, era como se fosse um ser invisível, como se não existisse. Hoje eu
entendo bem o que é isso, lendo textos de amigos. Levava broncas do chato
professor de Desenho Geométrico que não admitia que sentássemos encurvadas e
arrastássemos cadeiras, muitos menos “rebolar” borrachas de uma aluna para
outra, coisa que a Lurdinha fazia sempre. Chamada de atenção na hora e Lurdinha
era a preferida dele, para censurar. Coitada, já sentava no final da sala,
ninguém conversava com ela, nem eu, apesar de lhe dispensar uma certa ternura. Chegou o final do ano e eu era craque em
desenho, Lurdinha não. O tempo regulamentar era de 1h30 e Lurdinha sentou-se ao
meu lado e em dado momento, olhou para mim, com aqueles olhinhos tortos, como a
suplicar: me ajude! Num impulso, falei baixinho, me dá tua prova. Troquei com a
dela e fiz todos os exercícios, destrocamos e a sirene tocou. Não consegui
fazer a minha, fui reprovada. A escola tinha
mudado o tempo para as provas e não nos avisaram. Mudaram para apenas 40m e não
mais 1h30, tempo
suficiente para fazer as duas. Lurdinha passou, eu tive que repetir o ano.
Nunca mais a encontrei, não sei da sua vida. Hoje eu gostaria de saber dos
caminhos daquela menina, se ainda vive. Tem nada não Lurdinha, aquele professor
merecia, você merecia passar. Afinal, quantas privações você não deve ter
passado pra frequentar aquela escola, quanto chão não terá andado pra chegar
lá, seus sapatos denunciavam isso, a gente nunca ligou. A gente nunca pensou
que talvez aquele leite americano com pão da merenda fosse o único do seu dia.
A gente nunca lhe viu e hoje quero te pedir perdão, não porque resolveram
comemorar um dia que sou totalmente contra, mas porque lembrei de você e faz
tempo que queria registrar isso, que você foi importante na minha vida e que
teria ficado mais gente e mais humana se tivesse sido sua amiga e trocado
figurinhas como fazia com as outras. Hoje penso que talvez eu olhasse pra você
e visse a mim mesma, apesar de bem vestidinha e tudo o mais. Eu também fui “mal
vista” na própria família, por uma avó loura de olhos azuis que nunca me deu um
abraço, pelo irmão que me chamava de “Nega Zulu” quando brigávamos, fui a “lerelere”
da casa, serviços pesados todos eram-me incumbidos. Não me ensinaram música,
meu maior sonho. Acho que de tanto olhar para o céu e conversar com Deus,
acabei ficando branquinha como aquelas nuvens que tanto apreciava desde meus
tempos de menina. Ou será que fiquei azul? Sei lá, na verdade isso nunca
importou, nem importa. Mas que eu senti uma saudade danada de você hoje, eu
senti. Um beijo Lurdinha!
Bsb, 20/11/2013